domingo, 27 de novembro de 2011

Mitologias. (1) A escolha do reitor.

     Já fui contra eleições diretas para Reitor. O cerne do argumento que eu herdei era o seguinte. O Reitor não deve ser visto como um representante de alunos, funcionários e professores - ele não é uma espécie de chefe supremo das associações de categoria, costurando pelo alto as representações parciais da Adusp, da Asusp e do DCE. Ele é gestor de um órgão público e, enquanto tal, deve satisfações antes de mais nada ao contribuinte, que paga as contas da Universidade. É justo, portanto, que o Governador, que representa a população, tenha a última palavra nessa escolha.

     Do outro lado dessa oposição pré-existente, que delimita rigidamente os termos do debate, temos os argumentos pela "autonomia universitária". A Universidade não deve ser vista como  extensão do Estado, prestando obediência ao governante de plantão. Ela só pode cumprir bem o seu papel se for autônoma. Só assim ela será capaz de justificar o investimento feito nela com dinheiro do contribuinte. O Governador não tem nada que meter o bedelho, portanto, nos assuntos internos da Universidade de São Paulo, a começar pela escolha de seu dirigente máximo. Ele deve ser eleito diretamente por alunos, funcionários e professores.

     Contra o pano de fundo desta antinomia, duas representações simbólicas da universidade se definem. 

      A primeira está impregnada pela idéia de Empresa. A universidade deve ser "gerida" de forma eficiente, pois recebe "recursos" da sociedade e deve lhe dar em troca determinados "bens" e "serviços".

    A segunda está impregnada pela idéia de Estado. A universidade deve ser "governada" por um "representante" eleito com o auxílio de uma espécie de parlamento (o Conselho Universitário), e deve ser "autônoma" em suas relações com o Estado mais ou menos como o próprio Estado é autônomo em suas decisões. 

     Duas metáforas involuntárias, como se vê. Não são conclusões de um raciocínio, mas o lugar no interior do qual os raciocínios são construídos. São duas figuras (eu quase diria - "dois ídolos") sobre as quais projetamos toda a carga emocional associada nos últimos trinta anos à oposição entre Empresa e Estado. Mais ou menos como alguém poderia odiar uma pessoa que se tornasse o símbolo de seu próprio pai. Um caso para psicanalistas.

     Essas idolatrias mutuamente incompatíveis nos condenam a uma visão originariamente parcial e a um diálogo de surdos. Cada participante do debate está falando de seu próprio ídolo. 

     O diálogo só terá início quando abdicarmos dessa simbologia redutora e emocionalmente explosiva. Nossa primeira tarefa, portanto, é implodir essa mitologia, para que a universidade-instituição (e não a universidade-símbolo) comece a ser discutida.

                                            
     Alguns esboços para discussões futuras:

     1. É indiscutível que o sistema vigente para eleição do reitor é completamente absurdo. Se a escolha fosse feita num jogo de bingo, ela seria mais racional. Rodas é provavelmente o último reitor "eleito" por lista tríplice. Uma nova "eleição" conduzida nos mesmos moldes transformaria a USP numa praça de guerra.

    2. Nunca, em nenhum momento, depois do processo de redemocratização, a autonomia de pesquisa e docência da Universidade foi ferida. O docente que disser o contrário disso está mentindo. Na Universidade de São Paulo, cada docente ensina o que quer, pesquisa como acha melhor, e se financia junto às agências de forma absolutamente autônoma. O sistema (repito - absurdo) de escolha do reitor não tem absolutamente nada a ver com a autonomia de pesquisa e docência. 

    3. Uma universidade (principalmente quando ela possui o tamanho da USP) tem, sim, que ser gerida, e bem. Nenhum dos professores que ocuparam a Reitoria até hoje teria competência para gerir uma padaria. Não foram treinados para isso. Não têm a vocação nem o conhecimento necessários para tanto. Isso não mudaria com as eleições diretas. O sistema de escolha do reitor não tem absolutamente nada a ver com capacidade de gestão de orçamentos bilionários e burocracias gigantescas. 

    4. É preciso separar a gestão administrativa da gestão acadêmica da Universidade. A primeira deve ser entregue a gestores profissionais com experiência no ramo. A segunda, a um Conselho Universitário composto apenas por professores, mas eleito pela comunidade (com pesos diferentes para cada categoria). O reitor seria apenas o presidente desse Conselho. 

3 comentários:

  1. João,

    Comecei a ler este post e pensava exatamente nos dois últimos pontos. Eu penso que professor na função de administrador é um absurdo, pois eles deveriam estar em sala de aula e fazendo pesquisa. Além disso, via de regra, eles são ligados a pequenos grupos nas sua instituições. Isso significa, em muitos casos, privilégios para certos grupos.

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  2. Saucedo,

    Mas é claro. Se o pusessem amanhã para gerir uma empresa com milhares de funcionários, uma burocracia complicadíssima e um orçamento bilionário, você iria fazer o quê? Começa com "c", não começa? Pois é. Nenhuma das pessoas que chegam até lá é muito melhor do que você.

    Enquanto persistir esse modelo de discussão "Empresa x Estado", a coisa não anda.

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  3. Admitir a possibilidade de ingerência governamental na administração da USP é, de saída, comprometer sua natureza institucional: a USP é uma autarquia "A Universidade de São Paulo-USP é autarquia de regime especial, com autonomia didático-científica, administrativa, disciplinar e de gestão financeira e patrimonial.", reconhecida no próprio Portal do Governo do Estado de SP http://www.saopaulo.sp.gov.br/orgaos/autarquias_usp

    E a autonomia é, ao meu ver, a justificativa para que ela tenha essa natureza.

    Certamente muitos não concordam com essa condição. No entanto, na minha opinião, sobre ela não há o que discutir.

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