terça-feira, 29 de novembro de 2011

Mitologias. (3) O cadeiraço.

Engana-se quem pensa que as carteiras empilhadas nos corredores estejam apenas desempenhando uma função de ordem prática. Não foram postas ali apenas para inviabilizar fisicamente aulas que, não fosse por esse tipo de violência, estariam acontecendo normalmente. Elas têm um caráter simbólico. Têm que ser lidas, e lidas em voz alta, pois, em sua linguagem silenciosa, estão o tempo todo dirigindo-se aos passantes, sem que ninguém as conteste. 

É preciso ouvi-las. E dar-lhes a devida resposta.

Deslocadas de seu lugar natural, apontam insistentemente para a sala de aula. É sobre ela que estão falando.  É dela que apresentam, exiladas, um retrato negativo: o que a sala já não tem, o que a sala já não pode, o que a sala já não é. 

Espremendo-se, claustrofóbicas, elas nos contam de um espaço finalmente oco, finalmente livre, onde o ar já pode enfim circular. Uma sala renovada pelo vazio, pronta para um novo uso. Ou, menos que isso: pronta para não ter  uso nenhum. A Universidade, agora, é aqui. Visitas à velha senhora, só mesmo pelo postigo. Suspeita. Louca. Prisioneira. 

De pernas para o ar, elas dizem que um mundo antigo ruiu. Não foi desastre natural, logo se vê. Foi gesto humano. Cada carteira traz consigo a sombra da vontade que a dirigiu, do braço que a carregou. Uma ordem se impôs pela força, e exige nosso respeito. O mesmo braço continua disponível nas redondezas. A mesma vontade continua pulsando por toda parte. 

De pernas para o ar, atestam a própria morte. Às centenas, como insetos. "Os que vão viver te saúdam." 

Embaralhadas, anárquicas, vão dizendo ao visitante que uma nova ordem se instalou. Procure onde não houver fileiras. Procure onde não houver lugares determinados. Procure onde não houver oposição entre quem ensina e quem aprende. (Ah, essa arte de mentir melifluamente... Com o tacape sempre à mão, é claro. Sacumé... Just in case.)

"Uma subversão apenas temporária", disse um colega. Que o seja. Mas o que esta cena temporária está nos dizendo, afinal? Que, quando a política chega, o conhecimento se cala. Que, quando a palavra não chega, a força bruta é quem fala. 

É essa lógica perversa que está por trás da farsa das votações em assembléia, dos piquetes, das pequenas violências consentidas em nome de um ideal maior. Talvez exibida assim, sem maquilagem, essa mitologia ainda conserve algum poder de encantamento. As pessoas que se encantam com ela, no entanto, devem deixar de ser hipócritas e reconhecer que, ao fim e ao cabo, o brucutu que atacou o professor Marcelo Barra não estava fazendo outra coisa senão levar às últimas conseqüências os princípios que elas mesmas inscrevem em cada um dos símbolos que espalham pelo mundo.  


Depois, quando a polícia chega, fazem carinha de dodói. Tá bom, santa!

4 comentários:

  1. Plínio Junqueira Smith29 de novembro de 2011 às 09:31

    João,
    concordo com boa parte do que você diz, em particular com a identificação do cinismo de usar a força bruta para impor uma vontade que faz calar o conhecimento e silenciar a palavra e, depois, queixar-se do uso da força (desta vez, legítima, porque calcada em decisão judicial). Aliás, queixam-se da truculência, mas creio que as pessoas se esqueceram do que é, de verdade, a truculência da polícia quando esta lida com pessoas (bandidas ou não) na periferia. Como se esquecem do que foi a violência política na época da ditadura. É uma vergonha para algumas pessoas (sobretudo aquelas que viveram o período da ditadura) igualar essas situações tão díspares e apoiar algo cujo significado parece ser tão diferente.
    Por isso, também acho interessante tentar entender o que essas "cenas temporárias" significam, mesmo que não nos agradem. Aqui, tive a impressão de que você acha que não são temporárias (essa, pareceu-me, foi uma concessão por cortesia) e que, para você, um mundo ruiu. Não sei bem o que pensar. Acho esse pensamento um pouco derrotista (se for isso mesmo o que você pensa). Uma coisa me parece certa: a universidade, hoje, tem funções bem diferentes das que tinha há algumas décadas e é preciso repensá-la. Trata-se de um fenômeno mundial: as universidades estão lotadas de gente na França, Estados Unidos, Canadá, México, Argentina, não só por aqui. A universidade numa sociedade democrática deve formar um batalhão de gente, não apenas uma elite intelectual. O saudosismo não me parece uma boa alternativa; ficar lutando contra um fato que já se impôs é como dar murro em ponta de faca. Além disso, não querer muitos alunos, só querer alunos bons, sem lidar com os alunos mais problemáticos (que inevitavelmente vem com o grande número de alunos), é querer manter um certo privilégio. É preciso pensar como lidar com essa massa de alunos. Como cumprir adequadamente essa nova função? Eis uma pergunta indispensável, a meu ver.

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  2. Plínio, meu caro, muitíssimo obrigado por sua visita e por seu depoimento.

    Você tem toda razão. A Universidade é outra, se massificou. Só que toda a estrutura ainda é a mesma. Damos aulas do mesmo modo, avaliamos alunos do mesmo modo, colocamos no horizonte os mesmos objetivos. Não pode. Teríamos que estudar as experiências de outros países, imaginar soluções. Vou lhe dar um exemplo. Terei pouco mais de uma semana para corrigir uma centena de trabalhos. É razoável isso? É simplesmente POSSÍVEL corrigir uma centena de trabalhos em dez dias? Temos que repensar essa estrutura toda, e espero que este blog, como outros que estão surgindo por aí, colaborem nesse processo.

    Quanto à observação que você faz sobre o caráter temporário do "cadeiraço", meu ponto é o seguinte. Mesmo sendo temporário, a simbologia que ele encarna é ruim, pois expressa, em última instância, o primado da violência.

    Grande abraço.

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  3. João Virgílio,

    O cadeiraço simboliza que as aulas não se restringem as salas, mas fora dela onde ocorrem fatos correlatos com a sala de aula. Então, nesse momento do cadeiraço, a aula ocorre em outro lugar e com outro tema. O tema é o que é publico e privado na universidade? Por que o reitor escolheu a PM e não outras medidas? Por que o Conselho Universitário tem essa organização? Podemos mudar essa organização? O que é republicanismo? O que é democracia? Esses são alguns dos novos temas.
    No entanto, frente a essas questões e outras que ultrapassam a universidade, a maioria silenciosa não age, não vai na assembleia, não faz nada além de ir as aulas. Só a aula. É isso que importa. Quando os alunos mobilizados agem em desacordo com esse cotidiano, então, eles falam e gritam por todos os lados que seus direitos estão sendo violados por esses alunos. Porém, essa maioria esquece como os seus queridos direitos foram conquistados. Foi com muita luta e essa luta atrapalhou muita gente. Além disso, a greve de 2007 garantiu professores para essa maioria silenciosa ter aula hoje. E essa greve também incomodou demais a maioria silenciosa. O que a maioria silenciosa quer? Quer direito sem lutar? Há na história uma mobilização por direitos feita por petição eletrônica? São a regra ou a exceção?
    Então, questiono-me: por exemplo, se identifico o problema da falta de professores e faço uma greve em cima desse problema. Se eu ganhar a luta, teremos professores. Além do mais, não será eu o único a assistir à aula. Não farei uma lista de quem pode assistir às aulas baseado nas suas ações políticas do passado. Se quiser, é só assistir à aula. Isso não justificaria meus atos políticos?Por quê? Será porque incomodo a maioria, mas ela desfrutará dos ganhos da luta. Por favor, não coloquem aqui aquela ideia: “então pode matar!” Pois, essa atitude é rara na ação política estudantil. Bater em professor, agredir aluno é exceção. Quem faz isso é um idiota.
    Nesse quadro, a maioria sinaliza para a reitoria fazer o que quiser, pois, não aquela fará nada. Pode privatizar a universidade, pois ela já estudou nela mesmo. Já fez a pós-graduação e tudo que tinha direito. E os outros cidadãos? Se eles não tiverem como pagar, não estudaram? Essa maioria não estaria restringindo o direito dos outros estudarem numa universidade pública? Isso não é cadeiraço simbólico na vida dos nossos concidadãos?
    Quando posso agir? Posso agir em vista do interesse particular, interesse corporativista ou interesse público?

    Até,
    Flavio Pereira

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  4. Flávio Pereira, a greve por mais professores fois em 2002 e foi uma greve legítima, pelos seus objetivos, e legitimada, pois os estudantes queriam, sim, mais professores.

    Acho desonesto usar uma ou outras greves para justificar esta que foi um erro atrás do outro, tanto nas suas causas, quanto nos seus métodos.

    Não concordo com essas justificativas que você usa, que torna alguns mártires detentores de todo o mérito das conquistas alcançadas. Isso não é verdade. Não há nenhum mérito neste momento. O que há é uma enorme ônus que todos nós carregamos, mesmo os que não concordam com nada do que foi feito.

    O movimento de 2011 foi incoerente, violento, coercitivo e não teve legitimidade.

    Um plebiscito na USP teria deixado isso muito claro.

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