sábado, 3 de dezembro de 2011

Mitologias. (4) A República Autônoma do Butantã.


Para quem vem da Euzébio Matoso, o contraste é chocante. Avenidas amplas, árvores por toda parte, grandes espaços vazios, prédios baixos, pessoas bem vestidas, nenhum bêbado caído na calçada. É como entrar numa outra cidade, ou num outro país, com seus hospitais, seus estádios, sua arquitetura modernosa, seus restaurantes típicos, suas linhas de ônibus, seus albergues - até sua própria polícia. No centro do território, a sede do poder local.

Como se pode ver, até mesmo o aspecto físico reforça uma certa auto-imagem* da RAB (República Autônoma do Butantã) - a de um enclave dentro do país, com suas próprias regras, costumes e códigos de conduta. É como se cada prédio, cada avenida, cada árvore da República gritasse ao mundo externo - "não se metam em nossos assuntos".
A paisagem humana faria coro aos sonhos republicanos, não fosse por dois inconvenientes - um pequeno, outro um pouco maior. 
Comecemos pelo miúdo. A população da RAB está dividida em castas. (Falamos aqui apenas dos que têm cidadania, e portam documento de identificação. Sobre os outros, falaremos em seguida.) Alunos, professores e funcionários formam compartimentos fechados, incomunicáveis. Cada qual tem suas associações de casta, seus pontos de encontro, seus interesses, sua "identidade social" no interior do enclave. Até mesmo os defensores mais ardorosos dos ideais "democráticos", como veremos, aceitam (por inexorável) a manutenção das barreiras e limites impostos por esse antigo e respeitável sistema. Um estorvo de somenos, como sabemos, facilmente contornável pela instituição do "voto castiço", distribuído pelas três castas de cidadãos.
Os terceirizados representam uma aporrinhação teórica mais séria. Onde inseri-los? Trabalham aqui, mas não "são" daqui. Para facilitar o reconhecimento, vestem-se com um uniforme berrante, para que o cidadão comum não incorra na invonveniência de lhes dizer um "bom dia" por engano. Também são "funcionários", pero no mucho, se me entendem. Se não me entendem, não façam muito esforço, pois a verdade é que isso, na prática, importa muito pouco. O problema, apesar de complicado, é simplesmente teórico, conforme anunciei acima. No frigir dos ovos, ninguém pensa nisso. Houvesse eleições livres dentro da RAB, não votariam, e pronto. Assunto encerrado.
Acomodadas as castas, por meio do voto castiço, e excluídos os "dalits" terceirizados, estaria aberto o caminho para eleições livres, democráticas e soberanas para a presidência da RAB, bem como para seu parlamento, conselho de anciões, ou coisa que o valha. É a velha bandeira de luta da comunidade, lembrada a cada ano nas já tradicionais invasões a botinadas feitas ao Palácio do Interventor nomeado pelo Governo do Estado.
Não vou discutir aqui o mérito da questão. Isso fica para outro post. Hoje, quero apenas lembrar o quanto esse formato "mitológico" da questão impede uma visão clara dos problemas efetivos envolvidos no atual processo de escolha do Reitor e na gestão da gigantesca e complexa estrutura burocrática da Universidade de São Paulo.
Alega-se, por exemplo, que o sistema atual não é "democrático", como se o Reitor da Universidade fosse uma espécie de "Presidente da República" (Autônoma do Butantã ), e o Conselho Universitário devesse se transformar numa espécie de "Parlamento". A defesa das eleições diretas (mas castiças, conforme já ficou dito) para Reitor pode sem dúvida ser feita, e eu mesmo darei em outros posts alguns argumentos nesse sentido. Mas é claro que isso não tem nada a ver com a defesa da "democracia", ou com a defesa de "valores democráticos" em geral. Isso é uma asneira sem tamanho. Alguém pode perfeitamente ser um democrata sem defender por isso eleições diretas para Reitor, para a presidência do Metrô, para a presidência da Petrobrás, ou sei lá o quê. Universidades não são republiquetas instaladas nos arrebaldes das metrópoles - vamos partir daí. São financiadas com dinheiro público, e devem, sim, satisfações à sociedade que as financia. Se há bons argumentos para a eleição do reitor, eles definitivamente não passam pela palavra "democracia".
Outra vítima da "mitologia da RAB" é a gestão. Os problemas específicos associados à gestão da universidade ficam de fora, como se fossem irrelevantes. Ficamos tão obcecados pela idéia de que a Universidade é um país em miniatura, que nos esquecemos de que ela é, antes de mais nada, uma estrutura estatal gigantesca que, como qualquer estrutura desse porte, tem que ser gerida profissionalmente. Tentem por um momento imaginar qualquer um dos reitores que passaram (e passarão) pela Universidade de São Paulo posto no comando de uma padaria de bairro. Seria um desastre, e não seria culpa deles. Quase nenhum professor universitário tem o conhecimento técnico e a experiência profissional necessária para gerir organizações complexas. É óbvio (para mim, pelo menos) que a discussão deveria separar, logo de início, o problema da gestão administrativa da Universidade (que pode perfeitamente ser entregue a técnicos recrutados no mercado) do problema da gestão acadêmica (que, esta sim, pode e deve ser conduzida por um professor que carregue consigo algum tipo de anuência prévia de seus pares).
O que venho chamando aqui (um pouco livremente) de "mitologia" é um esquema conceitual contrabandeado de um âmbito para outro, que acaba trancafiando toda a discussão nos limites de uma metáfora. O problema das mitologias não é apenas que elas sugerem falsas soluções - isso se corrige mais facilmente. Elas sugerem falsas perguntas. Mais ainda, elas nos impedem de fazer as perguntas relevantes em cada caso, levando-nos a perder um tempo imenso com inquietações de natureza puramente simbólica, que não nos levam a nenhum ponto diferente daquele do qual partimos. A única maneira de vencer uma mitologia é denunciando-a, expondo-a à luz do dia. Sua força vem sobretudo do fato de não ser confessada. Visível, ela tem sempre um aspecto um pouco ridículo, infantil, imotivado. Não precisa ser nem sequer ser combatida, pois acaba caindo de madura. Ela se parece com esses personagens de desenho animado que conseguem correr tranquilamente no vazio, até perceberem, de repente, que não têm chão nenhum embaixo dos pés. 

*Venho praticando a desobediência civil em relação à nova reforma ortográfica, conforme terão notado os leitores habituais do blog.

2 comentários:

  1. Professor quero dar uma ideia. estas pessoas que tanto dizem ter o direito divino das assembleias para fazerem o que bem entendem se recusam de todas as formas possíveis a realizarem votações por urna e dizem que a unica forma possível de mudar as atuais ideias em relação a assembleia seria na própria assembleia, porem o que fariam eles caso fosse entregue um abaixo assinado a favor da votação em urna?

    Então te pergunto, como poderíamos fazer tal abaixo assinado, digo, pelas ferias o ideal seria realizar isso virtualmente, divulgar via Facebook, penso em talvez pedir nome,rg, no usp e o curso frequentado.

    mas se isso for feito de fato, o que fazer com o resultado? a quem entregar isso? quantas pessoas precisariam assinar para ser valido? e outra eles aceitariam isso como legitimo? sendo que não ocorreu uma assembleia para isso acontecer?

    gostaria de sua ajuda professor pois a ideia surgiu em minha mente e talvez isso possa provar de uma vez por todas que a opinião da grande maioria não é representada em assembleia.

    grato.

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  2. IBMIN,

    Vocês terão que achar o caminho. É difícil, mesmo. Entre vocês, pelo menos, existe uma disposição para o diálogo e para a mudança. Entre os professores, nem isso. Algo que me diz que vocês terão que liderar a mudança.
    abs

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